Um vento frio fez um
barulho estranho ao bater na janela entreaberta. Mark puxou ainda mais as
cobertas e cobriu o rosto, um calafrio percorreu sua espinha.
Ele quis levantar e
correr para os braços de sua mãe, mas lembrou que ela não estava mais nesse
mundo. O lado dela na cama estava vazio e o seu pai estava, mais uma vez,
bebendo e chorando pela morte precoce de sua esposa.
O quarto estava muito
escuro, apenas pequenos feixes de luz passavam por entre as frestas da cortina
nova, especialmente comprada para o seu quarto novo que iria dividir com seu
pequeno irmão que fora embora com sua mãe, a casa nova que eles nunca iriam
compartilhar. Casa que não era assim tão nova, mas um antigo casarão que ficava
na periferia da cidade, construído nos anos 20, mas que sempre fora a paixão de
sua mãe. No entanto, ainda que finalmente tenham conseguido comprar a casa, ela
nunca iria chegar a viver o seu sonho de morar lá. Ele estava sozinho na
primeira noite em sua nova casa.
Já passava das duas e
meia da manhã quando Mark acordou súbitamente. Seu corpo estava ensopado de
suor e sua boca seca. A princípio, não foi possível identificar o motivo de seu
despertar, mas, aos poucos, pequenos sussurros começaram a ficar audíveis.
Sussurros que formavam uma melodia, uma leve canção de ninar, como as que sua
mãe cantava para ele. Seus batimentos cardíacos aumentaram, suas mãos suavam e
cada vez mais nitidamente ele ouvia aquela velha canção de ninar.
A voz era mais infantil,
mas parecia a sua mãe. Mark não conseguia se controlar. Saltou da cama e tentou
seguir aquela bela voz, precisava de algum acalento.
Os pés vacilantes de
Mark tocaram o chão frio e ele se arrepiou mais uma vez. Calçou os chinelos e
tentou caminhar no escuro, tateando o quarto recente e ainda desconhecido sob a
baixa luminosidade. O som parecia surgir de dentro de uma porta onde deveria
ser o armário, mas que agora só tinha um empilhado de caixas.
Mark se aproximou
calmamente e abriu a porta. O canto agora era um pouco mais forte, mas com tons
desafinados de uma criança. Ele estava desesperado por companhia, podia não ser
sua mãe, mas talvez fosse qualquer pessoa que o consolasse.
O armário cheirava a
mofo e não tinha nenhuma saída. De onde vinha aquela voz? Ele começou a apalpar
as paredes, suas mãos estavam suadas e tremiam levemente. Aquela música
começava a enlouquecê-lo, penetrava em seus ouvidos e envolvia seu corpo, ele
não sabia mais se estava vivendo a realidade ou se estava tendo alucinações.
A música estava ainda
mais forte quando uma saliência na parede chamou a atenção dele. Não era apenas
uma saliência, mas um desnível do tamanho de uma pequena porta. Mark se
desesperou com a possibilidade de encontrar a dona de uma voz tão sedutora. Em um
impulso, seus dedos encontraram um pequeno pedaço solto no papel de parede e
ele começou a puxá-lo desesperadamente.
Pedaços de papel de
parede voavam por todos os lados, lágrimas escorriam pelo rosto de Mark e o seu
desespero fazia com que ele rasgasse o papel com mais força. Pedaços de papel
já cobriam o chão quando ele sentiu um pequeno ferrolho que trancava a porta
por fora. A voz agora era nítida e possuía todos os sentidos do pequeno garoto
e o enlouqueciam.
Enfim ele conseguiu
entreabrir a porta. Apenas era possível distinguir um pequeno vulto, sentado de
costas para a porta, cantando. Mark se abaixou para passar pela abertura
apertada.
A garota se virou
para ele.
31
de outubro de 1968, 12:34
Após beber a noite
inteira, Rudolph despertou muito tonto e com bastante dor de cabeça. O sol
forte invadia a cozinha de sua casa nova.
Olhou o relógio. Já
passava do meio dia. Onde estaria Mark?
Ele reconhecia que
estava sendo um péssimo pai, reconhecia suas falhas, mas a perda de sua mulher
durante o parto e seguida da morte de seu segundo filho o abalaram
profundamente e o jogaram de volta a um vício antigo.
Ele se afastou. Seu
hálito fedia a bebida e tinha um pouco de vômito em seu braço, resquícios de
mais uma noite que deveria ser esquecida. Rudolph olhou mais uma vez para o
faqueiro. A vontade de ceifar sua própria vida era grande e agonizante, a dor
que o atormentava levava sua sanidade aos poucos, mas Mark era um motivo para
permanecer, ele precisava cuidar do filho.
Ele andou tropeçando
nos próprios pés e se esforçando ao máximo para vencer a grande escada que
levaria ao quarto de seu filho. Precisava vê-lo antes de ir se deitar. A velha
rotina. Dormir após ao meio dia, acordar as 18:00 e beber até ver o sol nascer.
Ele tocou na maçaneta
fria do quarto de Mark e sentiu um calafrio percorrer seu braço. Ao abrir a
porta, Rudolph sentiu o seu mundo acabar pela segunda vez.
O quarto era um mar
de sangue. Os lençóis brancos estavam manchados de um líquido espesso e
vermelho que tingia também as paredes. Mark estava deitado de bruços na cama.
Os seus olhos castanhos miravam o vazio, suas pernas estavam viradas em ângulos
estranhos, seu rosto estava completamente arranhado. Mas o choque maior veio ao
virar o corpo do menino.
Um buraco negro e
profundo podia ser visto do lado esquerdo do peito. Ao redor do buraco haviam
marcas de unhas e de dentes, uma cena grotesca. Seus ossos da costela estavam
triturados, nada estava direito. Não havia qualquer sinal do coração do menino.
31 de outubro de 1968, 19:00
Depois
de uma pequena passada pela casa estranha, um guarda decide entrar e dar boas
vindas aos novos hóspedes que tinham acabado de chegar. Após bater muito na
porta e não ter resposta, decidiu entrar pela porta da cozinha que estava
sempre aberta.
A
casa estava escura. O guarda ergueu a lanterna e empurrou a porta. Sua lanterna
caiu no chão.
Pendurado
no teto havia o corpo de um homem adulto. Ele cheirava à morte, podridão e
álcool. Seu corpo pendia de uma corda mal amarrada, mas forte o suficiente para
sustentá-lo.
O
guarda ligou para a polícia. Enquanto aguardava notícias, decidiu seguir as
manchas de sangue que subiam até o primeiro andar. Um aperto tomou conta de seu
peito, ele já sabia qual queria o fim dessa história, não podia ser
coincidência.
Ele
empurrou a porta do quarto e ficou em estado de choque. Sim, tinha acontecido
de novo. Aquele seria uma longa noite de investigações que não dariam em nada.
De novo.
31 de Outubro de 1996, 00:13
Bianca se prepara
para dormir em seu novo quarto. O dia está frio, mas ela tem certeza que os
calafrios que sente não derivam da temperatura. Apesar das brigas com a irmão
mais novo, ela havia conseguido ficar com aquele quarto no primeiro andar, não
era um dos maiores, mas era o mais confortável.
A mudança tinha sido
bastante cansativa, depois de horas de arrumação, a velha casa parecia ter um
novo visual. Bianca precisava descansar, pois ainda haviam muitas coisas para
fazer, já que sua mãe só chegaria no outro dia de noite com o resto da mudança.
Talvez aquela nova
cidade significasse uma nova vida para ela e sua família. Depois que o seu pai
fora preso por ter matado alguns homens, Bianca, sua mãe e seu irmão, haviam
passado por bastantes problemas na cidade em que moravam, talvez agora tudo
pudesse ser diferente. Aqui ninguém conhecia a história deles.
Ela entrou debaixo
dos seus lençóis e se acomodou na cama. Uma sensação estranha estava lhe
deixando perturbada, mas ela supôs que fosse só o cansaço. O quarto estava
escuro. Ela estava sozinho em sua primeira noite na casa nova.
As 02:40 da manhã,
Bianca acordou assustada. Seu corpo suava muito e tremia. Ela andou
sorrateiramente até a janela e abriu-a deixando o vento da noite entrar. Ao se
virar para a entrada do quarto, se deparou com uma garotinha de costas, sentada
junto a porta e brincando com alguma coisa. Passou pela sua cabeça que podia
ser James, seu irmão, no entanto a garotinha tinha longos cabelos loiros e
cacheados e aparentava ter um pouco mais que 6 anos.
Bianca se aproximou e
a menina virou para ela.
No minuto seguinte
Bianca estava desacordada no chão. Algo quente ardia em seu peito e suas
entranhas ardiam como se tivessem sido incendiadas. A menina havia sumido, mas
ela podia sentir a presença da garotinha, dentro do seu corpo.
Bianca começou a se
debater no chão, sua consciência oscilava, vez por outra mostrando flashes de
uma vida que nunca lhe pertencera. Seu rosto estava vermelho, suas veias
saltavam da sua pele, seus braços e pernas se debatiam sem a sua ordem. Ela
estava perdendo o controle do próprio corpo. Ela podia sentir a essência da
garota tomando conta dele e o corroendo como ácido puro.
Ela precisava lutar contra
a menina, mas sua voz não saia, seu corpo não lhe obedecia. Ela estava perdendo
o próprio corpo. De repente seu corpo ficou de pé. Bianca se prendia a ele com
o resto de força que possuía, o que não era quase nada. Ele começou a se
empurrar contra as paredes, a puxar seus cabelos em sinal de loucura, mas nada
funcionava. A garota havia possuído-a.
Quando Bianca, enfim,
desabou desacordado no chão, lembranças começaram a vir em sua mente, como se
ela precisasse saber de alguma coisa.
Tudo ficou escuro, de
repente, Bianca estava novamente deitada em sua cama, mas era tudo diferente. O
quarto agora tinha tons leves de rosa, as colchas da cama eram cheias de
babados, ela tinha longos cabelos loiros e se chamava Cassie Kendle. Ela então
percebeu que estava dentro de uma das memórias da garota que acabara de possuir
o seu corpo.
Bianca podia sentir
todos os sentimentos que habitavam aquele pequeno corpo. O medo do escuro, a
ansiedade, algo ruim estava perto de acontecer. Alguns minutos depois um homem
gordo e muito peludo abre com força a porta do quarto. O pequeno corpo de
Cassie se encolhe e começa a tremer.
O brutamontes fede a
álcool e a alguém que não toma banho há dias. Ele se aproxima da cama e joga a
colcha no chão. Senta na beirada do colchão e dá um tapa no rosto da criança.
Bianca sente o rosto da menina queimar e as lágrimas começam a rolar sobre o
seu rosto. O homem arranca a camisola da menina e dá-lhe um puxão que quase
arranca o braço dela. Cassie agora está no colo dele e começa a ser violentada.
Com todas as forças
que lhe restam, Bianca se força a sair desse pesadelo. Ela começa a chorar, mas
o espírito da menina não a deixa em paz. Ela precisa ver mais coisas.
Bianca está de volta
às memórias. Dessa vez ela está dentro do pequeno armário do seu quarto. O
padrasto de Cassie acabou de deixar o lugar e ela sabe disso porquê o cheiro
podre dele ainda impregna o ambiente.
Há uma poça de sangue
ao redor da menina. As violências não são mais casos isolados, mas uma rotina.
Cassie está nua, existem cicatrizes e marcas de queimaduras por todo o seu
corpo. O belo cabelo loiro agora está sujo e foi arrancado totalmente em
algumas partes. Sua boca tem gosto de sangue e de esperma. A garota está mais
frágil do que nunca, mas é possível sentir dentro dela todo o ódio que nutre
pelo seu padrasto, por todos os homens do mundo. É possível sentir sua fúria e
o seu sentimento de vingança.
Ouvem-se gritos
vindos de outro cômodo. Bianca sabe que é a mãe de Cassie que está apanhando
dessa vez. Ela é capaz de sentir toda a dor que a pequena criança já passou na
vida. Agora, mais do que nunca, ela precisa sair desse pesadelo.
Tudo escurece.
Bianca está de novo
no quarto, mas não no corpo de Cassie. Ela agora é uma mera espectadora. Ela
está do lado de fora do armário. Ao se aproximar, é possível ver um pequeno
volume enrolado com um lençol e jogado no chão. O lençol está ensopado de
sangue e é o corpo morto de Cassie. Seu padrasto está dentro do armário
pregando uma portinha na parede. Depois que termina, ele joga o corpo da
criança dentro e fecha a portinha.
Algum tempo depois, talvez um dia ou dois,
embora Bianca não perceba a passagem do tempo, ele retorna. Tira o corpo da
menina de dentro do armário e o violenta. A carne já está apodrecendo. É
possível ver algumas baratas saindo da boca de Cassie, mas o padrasto da menina
só sai de cima do corpo dela quando alcança o seu prazer.
Bianca assiste a
tudo, mais aterrorizada do que nunca. A mesma cena se repete por horas, até que
ela reúne forças suficientes para sair dessa realidade paralela.
Com um grito, ela
volta ao tempo real. Cassie ainda está em seu corpo e Bianca consegue sentir
toda a raiva, a dor e o ódio da criança. Bianca fica cega, Cassie toma o
controle de seu corpo novamente. Em alguns momentos, Bianca consegue tomar de
volta o controle de suas pernas e seus pensamentos, mas na maioria do tempo,
ela fica como uma espectadora dos atos de Cassie em seu corpo.
Ela está chegando
próximo ao quarto de James.
Bianca tenta empurrar
seu corpo da escada. Ela sente que Cassie quer matar o seu irmão. A maldição é
essa, a menina irá matar todos os homens que entrarem em sua casa, até que
alguém tire o seu corpo daquele armário e a faça descansar em paz.
Cassie empurra o
corpo contra a porta do quarto de James, que se abre facilmente, já que as
dobradiças estavam folgadas. James acorda de sobressalto e não entende porque a
irmã está com a roupa rasgada e os olhos completamente negros. Ele começa a
gritar chamando a mãe, mas Cassie se joga na cama e cala a boca do menino com
as mãos.
Bianca quer ajudar,
ela quer salvar Cassie, quer dar o enterro digno que ela merece, mas o espírito
da menina só a deixará fazer isso quando matar James.
O garoto olha fundo
nos olhos dá irmã e começa a chorar. Ele sabe que não é ela que está ali. Ele
então finca os dentes com toda força nas mãos que tapam sua boca. A mão de
Bianca começa a sangrar e ela aproveita o momento em que Cassie se distrai para
retomar o controle e gritar para James sair correndo do quarto.
Bianca usa todo o
resto de suas forças para tentar se afastar enquanto James corre, mas Cassie é
mais forte e consegue possuir todo o corpo dela de uma vez.
31
de Outubro de 1996, 9:20
Bianca desperta muito
atordoada. Ela não sabe o que aconteceu, nem aonde está. Cada centímetro do seu
corpo dói como nunca e sua visão está bastante embaçada, mas ela sente algo
pegajoso grudado em todo o seu corpo.
Com um pouco mais de
calma, Bianca percebe que o espírito de Cassie já saiu de seu corpo, isso dá a
ela uma sensação de alívio que, rapidamente, é substituída por uma agonia. Ela
deixou Cassie tomar conta de seu corpo totalmente, onde estará James.
Bianca levanta do
chão e, mesmo com os protestos e as dores de seu corpo, corre até o quarto do
menino.
Ao encostar a mão na
maçaneta, ela começa a chorar. Ela percebe que sua roupa está todo suja de
sangue e que isso só pode significar uma coisa.
O corpo de James
estava caído no chão. Bianca escorregou ao seu lado e entrou em desespero. O
corpo do menino estava dilacerado. Faltavam grande pedaços de pele, haviam
arranhões, hematomas e o seu peito tinha sido arrancado. No lugar onde devia
ter um coração, só restavam algumas costelas quebradas e um grande buraco
vazio.
31
de Outubro de 1996, 20:42
Carmen entrou na
pequena estrada que levava à sua casa nova após uma longa viagem, vinha
trazendo o resto dos seus pertences que estavam na casa antiga.
A pequena caminhoneta
subia a ladeira pedregosa, enquanto ela contava os segundos para rever seus
filhos depois de um dia distante. Mesmo cansada, ainda iriam ter que terminar
de ajeitar a casa e preparar um pequeno jantar.
Ao avistar o primeiro
relance do antigo casarão, estranhou o fato de não haver nenhuma luz acesa.
Seus filhos deveriam estar dormindo, já que não havia possibilidades deles
terem saído de casa.
Carmen não conseguiu
reprimir o grito ao ver que tinha um corpo caído na frente de casa. Ao olhar
para cima, ela percebeu que a janela do sótão estava aberta e que, mesmo não
sendo tão alta, uma queda dali seria fatal devido ao piso de concreto que havia
na frente da casa.
Ao se aproximar, ela
percebeu que ali jazia o corpo já sem vida de Bianca. Mal sabia ela que aquela
noite terrível só estava começando e que aquele não seria o primeiro corpo que ela veria.
31
de outubro de 2014, 10:40
A família Jhonson
termina de descarregar o caminhão de mudanças. Apesar dos mitos e lendas que
rodeavam aquela velha mansão, ela fora tudo que o dinheiro deles podia pagar.
O pequeno Kevin
passou correndo pela porta para escolher seu quarto novo, enquanto sua mãe e
seu pai terminavam de colocar as caixas para dentro.
De repente, o pequeno
garoto volta correndo bastante animado:
- Mamãe... Mamãe por
favor, me deixa ficar com aquele quarto do primeiro andar, ele é perfeito para
mim, tem até um armário para colocar meus brinquedos dentro.
A mãe sorri, dá um
beijo na cabeça do menino e diz para que ele leve suas coisas para o quanto
desejado.
Aquele seria um longo
dia...
<3
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